quarta-feira, 14 de março de 2007

Sebinho e Branquinho
dormiam placidamente ...





Cá estou, em meio a duas "zungueiras" mirins, na mão de quem comprei essa bata. O cenário é a bela praia de Mussulo, que fica numa área de restinga bem em frente a Luanda. Lá existem excelentes casas de veraneio, mas caríssimas para alugar mesmo por temporadas curtas. O acesso é por barco (travessia em meia hora) e por isso muita gente tem a impressão de que Mussulo é uma ilha. Localiza-se como a Ilha de Itaparica, na sempre lembrada na Baía de Todos os Santos, bem em frente a Salvador.
As zungueiras são as milhares de angolanas que saem às ruas vendendo todo o tipo de mercadorias, que carregam na cabeça mesmo.



Essas zungueiras de Mussulo atendem a um público específico e oferecem produtos como roupas de praia, batas e peças inteiras de panos multicoloridos, ricamente estampados com figuras africanas e linhas geométricas, bem ao gosto e padrão daqui. O público consumidor são preferencialmente os turistas (brasileiros, portugueses, espanhóis, holandeses, etc). Mussulo é uma das melhores praias daqui e frequentada por gente de poder aquisitivo muito maior do que a imensa maioria dos angolanos...


Elas caminham o dia todo, sob sol escaldante. Assim é a vida das zungueiras.



É absolutamente incrível a capacidade das zungeuiras em equilibrar sobre a cabeça balaios, sacos, cestos, bacias e sacolas, onde transportam as mercadorias que vendem. Desafiando leis da física, o frágil equilíbrio se impõe perante vários obstáculos: o peso da própria mercadoria, o balançar do corpo andando o dia todo por longos percursos, buracos e pedras no chão e muitos obstáculos que se interpõem ante elas nas ruas e calçadas além dos filhos pequenos, que carregam às costas, atados por panos que amarram na frente à altura do peito. Milhares de zungueiras percorrem a cidade, o dia todo, de um ponto a outro de Luanda, arriscando-se muitas vezes em meio ao tumultuado trânsito. Em pé mesmo, vendem e dão troco sem alterar a posição dos filhotes, que não parecem incomodar-se ante aquele aparente desconforto. Vendem de tudo: frutas, verduras, aipim, legumes, facas, panelas, calcinhas, sandálias...




Quando cansam, param e se sentam nas calçadas onde amamentam seus bebês e tiram alguma fruta de seus alforjes para se alimentarem. Às vezes é numa esquina movimentada, mas já vi uma zungueira em pleno centro da cidade parar num calçadão, baixar seu balaio de peixe salgado e ressecado e dar meio abacate para o filho pequeno, que se lambuzava, bem na porta de uma moderna agencia de banco europeu, num belo contraste cultural. Idiossincrasias da globalização, que não comporta vertentes antropológicas nem aspectos humanistas em sua inexorável marcha, por isso nessa minha breve leitura contento-me em apenas analisar o episódio sob o prisma da plasticidade da cena e seu significado.




Com as elevadas taxas de desemprego e o escasso acesso a uma formação escolar ou profissional, ser um zungueira é a atividade que mais absorve jovens angolanas pobres, geralmente mães solteiras, algumas recém saídas da adolescência.

Conversei com duas delas: Esperança (aqui é nome próprio muito comum) Calixto Njando tem dois filhos. O que carregava às costas no momento da foto tem um curioso nome (de batismo, mesmo): SEBINHO.





Outra zungueira com quem conversei foi Segunda (nasceu numa segunda-feira, daí o nome) Berlarmino Roque. Vendia latas de leite em pó holandês. Perguntei-lhe se o bebê tomava daquele leite. Não, é muito caro, disse (obs: a lata que vendia, custava o equivalente a 15 dólares e poucos são os angolanos que têm renda de 1 dólar/dia). Leite somente o materno. O garoto tinha um pequeno sinal de nascença, uma marca de vitiligo, na fronte. Coisa pequena, mas o suficiente para lhe garantir o gracioso nome de BRANQUINHO.





"Sebinho" e "Branquinho"dormiam placidamente… Lá foram eles, pequenos africanos envoltos em panos coloridos, só com pezinhos e a cabeça de fora, atados às costas de suas mães, que prosseguiam em mais um dia na dura batalha pela sobrevivência.






Hoje (14 de março) é no Brasil o Dia Nacional da Poesia. Homenagem a Castro Alves (o "Cecéu"), que nasceu extamente há 160 anos, na Bahia. Poeta maior, emprestou sua pena e talento à causa abolicionista. Libertário e romântico, é na história pátria o talento que mais se empenhou pelo fim do cativeiro dos negros ! Pena que pouca gente (principalmente os atuais movimentos em defesa e afirmação da negritude como justo valor da cidadania) se lembre de homenageá-lo como convém. Em meu primeiro post nesse blog (Em África I de Castro Alves a Hannah Arendt, ver arquivo) refiro-me a essa causa que o bardo sertanejo abraçou com um ímpeto igual, senão maior, do que o usado para com as muitas damas que conquistou com seu canto condoreiro. Os mesmos arroubos ele utilizou em sua lira romântica e na forte temática social.

Luanda, 14 março 2007



8 comentários:

Anônimo disse...

Pai, estou de volta. Ontem no dia da Poesia e também aniversário de Glauber Rocha, o vulcão do mundo, constatei o quanto os nossos valores culturais não são cultivados.
A cidade e as pessoas não têm dimensão da data nem da importância deles. Ao ler sua crônica hoje, um hábito que tomei para mitigar a sua saudade, percebir que seus pensamentos estão sendo tão eficazes quanto a poesia e as imagens destes dois baianos que se imortalizaram no tempo.

Anônimo disse...

Jorginho,

Fantástico o texto, fantásticas as fotos - embora alguns tenha sida furadas pelo sarapatel hahaha.
Fiquei impressionada com a história dessas mulheres. Vc está me dando uma outra visão de angola, muito além daquele de dolares e dolares....

jorginhoemangola disse...

Obrigado Diego e Márcia Moreira.
Na verdade, algumas fotos eu tinha disponibilizado para Márcia Rodrigues do blog Sarapatel

Anônimo disse...

Filho,
É muito divertido ler essas crônicas!
Damos muitas risadas juntos aqui em casa! Digo para os meninos que essas curiosidades são "a sua cara" e que ainda bem que esse bom humor faz parte do seu dia a dia, onde você estiver!
Te amo!
Beijos, ANINHA RAMOS.

Anônimo disse...

Papai,
Parecemos uns doidos rindo na frente do computador aqui em casa!
Ler suas crônicas é, realmente, um alento à distância física e torna nossos dias muito melhores... :)
Fico imaginando aqui as situações que ensejariam suas piadinhas sensacionais... ainda bem que temos esse blog, que nos possibilita renovar o acervo!
Saudade imensurável... milhões de beijos!
Desirée.

andre rezende disse...

Lindas fotos!Parabéns!
andrerezendemaquetes.blogspot.com

Anônimo disse...

Ola Jorge Ramos, somos três estudantes do curso de História da Universidade Católica de Pernambuco (Eudas Miranda, Luana Nize e Viviane Ribeiro)estamos fazendo uma pesquisa para apresentar no I Simpósio Brasil-África de Ensino Superior e nosso objeto de estudo será As Mulheres Zungueiras de Angola.‏ Vimos sua abordagem a respeito do nosso tema e gostariamos da sua indicação para algumas fontes bibliográficas do mesmo que ressalte a origem dessas mulheres até a atualidade.
Desde já agradecemos sua atenção.
Nossos Contatos:
eudasmil@hotmail.com
cigana_linda@hotmail.com
viviannehistoria@gmail.com

zolabeni disse...

Lindas fotos!Parabéns!
Uma visao pura e real de angola :)