AS ESCOLHAS DE LUANDINO
Luandino Vieira (escritor angolano, radicado em Portugal)
Num fim de tarde fui à sede da União dos Escritores de Angola (UEA) para o lançamento do mais novo livro de Luandino Vieira, um dos principais e mais emblemáticos escritores daqui. Queria conhecê-lo pessoalmente e obter um autógrafo para “De Rios Velhos e Guerrilheiros”, o primeiro volume da sua trilogia “O Livro dos Rios”.
À entrada do prédio, dois angolanos tocavam marimba, um instrumento musical típico, bastante artesanal e formado por uma série de cabaças, que servem como caixa de ressonância, encimada por teclas metálicas que são percutidas com uma baqueta. A marimba pode ser executada por duas pessoas mas existem as menores, com menos teclas e cabaças, destinadas a um único músico. Essas, porém, são mais utilizadas em cerimônias religiosas e praticas divinatórias.
Tocadores de marimba (Foto JR)
Depois de apreciar a exibição e de me encantar com o som extraído e o canto rouquenho em uma das línguas nativas desse país, subo as escadas do prédio e procuro o escritor. Cheguei bem antes do horário marcado para a solenidade e encontrei-o no jardim, recebendo cumprimentos de velhos amigos e funcionários da UEA, entidade que fundou e foi o primeiro presidente.
Ao apresentar-me, ele sorriu e falou com imenso carinho da "Bahia de Jorge Amado e de João Ubaldo”, afirmando que conhece Salvador e Itaparica. Tiramos algumas fotos e depois fomos para a Biblioteca onde ele iria gravar uma entrevista especial para a Rádio e Televisão Pública de Angola (RTPA).
Assisti a toda a gravação da entrevista. O repórter e o cinegrafista eram brasileiros, a quem já conhecia. Luandino falou da infância, juventude, política, influencias literárias - revelou um notável conhecimento da literatura brasileira, citando mesmo Machado de Assis, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos como influências - e sua participação “modesta” (mas somente em suas palavras) na luta pela Independência de Angola. Falou também dos longos anos de prisão por se engajar na luta pela libertação de Angola, sua obra literária, o livro que está lançando e o futuro de Angola, que ele “doentiamente otimista” acredita estar sendo construído, "apesar do aparente caos”.
Ele sabe do que fala e escreve, porque é um dos intelectuais angolanos que têm papel importante na história do país. Ainda jovem se engajou nos movimentos literários da juventude angolana e participou, em sua “própria trincheira” do processo de lutas pela independência do país. É da vivência com o povo e desse período de prisão política que extrai muitas das referências em sua obra.
Vivia-se naquela década de 50, quando ele ainda adolescente se iniciava nas letras, o surgimento da africanidade, movimento continental de afirmação da nacionalidade e da luta (muitas vezes armada) dos diversos povos africanos pela independência de seus países. A literatura africana surge pela primeira vez para o mundo nesse momento histórico de revoluções nacionalistas. O que até então era passado de geração em geração, somente pela tradição oral da ancestralidade, assumiu formas poéticas, de contos, ensaios, novelas, romances e pesquisas historiográficas. Em prosa e verso, a Àfrica foi se tornando também independente. A sua gente passou a ser vista pelo olhar do seu povo, em suas línguas nativas, com sua arte, costumes e crenças. A transmissão da sua história, os mitos, provérbios, enigmas, contos e criações da sua cultura passaram enfim a simbolizar a própria identidade africana. Atualmente a literatura africana está em franca ascensão e muitos acreditam que ela venha a ser o próximo boom mundial das letras, como já o foi a latino-americana.
Também em Angola naquela época a busca da identidade nacional era realizada basicamente através da poesia, mas sem excluir outras formas de expressão literária, todas a serviço também da mesma causa. E muitos jovens que possuíam veleidades literárias puseram sua pena a serviço da libertação do país. O próprio Agostinho Neto já era dos expoentes da poesia africana quando entrou para a guerrilha contra a dominação colonial e veio a ser o primeiro presidente de Angola.
As três histórias desse livro são habilmente elaboradas de forma a mostrar uma espécie de contraponto à realidade da colonização, revelando o quanto as diferenças culturais de Angola contrariavam o mito da unidade, presente no discurso da ditadura colonial. A diversidade com que a cidade se apresenta livro revela a verdadeira face de Luanda. E a obra, a criação literária em si, serviu também para justificar a independência, que muitos angolanos já buscavam com armas nas mãos desde 1961.
Luandino nasceu em Portugal, em 1935. Veio para Angola aos três anos na companhia de seus pais, colonos portugueses. Aqui viveu intensamente, não só a infância e adolescência mas principalmente forjou sua identidade política e literária. Após a independência recebeu a nacionalidade angolana, dirigiu a Rádio e Televisão Pública de Angola (RTPA), o órgão estatal de cinema e foi um dos fundadores da União dos Escritores de Angola. Desde 1992 optou por um estilo de vida simples, recluso em um Convento no norte de Portugal. Tão desapegado aos bens materiais que em maio deste ano surpreendeu muita gente ao rejeitar “por razões pessoais, íntimas” o Prêmio Camões, a maior comenda literária da língua portuguesa, dada pelo conjunto de sua obra. Valor do prêmio: 100 mil euros (algo em torno de 273 mil reais) !. Assim é José Vieira Marques da Graça (nome de batismo). Ele faz suas próprias escolhas. O cidadão optou por lutar pela independência da pátria que aprendeu a amar, mesmo ao custo de sua própria liberdade. O escritor optou por resgatar a identidade cultural de um povo, em estórias e romances cuja linguagem ele extrai da vivência social, da cultura popular e da relação entre o homem e a Natureza. E escolheu um pseudônimo literário que bem define e explica o amor pela terra e gente angolanas: LUANDINO.
Perguntei-lhe se o “Vieira” era homenagem ao Padre Antônio Vieira, o “Imperador da Língua Portuguesa” no dizer de Fernando Pessoa. Ele respondeu afirmando que, às vezes, brinca dizendo que descende sim do Padre Antônio Vieira ("quem dera, quem dera ...!") mas que na verdade o Viera é uma referência ao avô que num dia longínquo, há quase cem anos, lá numa aldeia em Portugal, saiu para comprar fósforos e nunca voltou, abandonando mulher e filhos. Eles só voltaram a ter notícias do velho quando ele morreu, sessenta anos depois, em San Francisco, na Califórnia. ”Acho que é por isso que sou assim” e riu, ao tempo em que me assinava o autógrafo.
Falar em refeição, tal qual sucede em Portugal o "café da manhã" recebe aqui dois nomes, ambos curiosos:
1) Pequeno almoço;
2) Matabichar (sim, de "matar o bicho", da fome creio). No primeiro sábado em Luanda, a empregada queria "tirar a mesa" e surpreendeu-me, perguntando se todos da casa já tínhamos "matabichado"...