sexta-feira, 23 de março de 2007

Não me fizeram falta as aulas de Físico/Química que filei...
para visitar SARA




SARA SILVA DE BRITO, ao ser empossada
Desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia
23/03/2007




1973. Tinha completado 18 anos e estudava na Escola Técnica Federal da Bahia. Poucas vezes matava aulas, mas quando o fazia eram as de Físico-Química, matéria que abominava. Saía do Barbalho, descia uma ladeira, atravessava um larguinho que existe no topo da Ladeira da Água Brusca, entrava num dos becos em torno, subia outra ladeira estreita. E assim, após alguns minutos andando por becos e ladeiras da velha Bahia, chegava ao Largo de Santo Antônio. Dali avista - se uma das paisagens mais encantadoras da imponente Baía de Todos os Santos. Às vezes da balaustrada contemplava o torvelinho que é Água de Meninos e a Feira de São Joaquim, os barcos e saveiros indo e vindo do Recôncavo ! Estava ao lado do Forte de Santo Antônio, para onde me dirigia. Dali partiram tiros de canhão para defender a Bahia nas duas vezes que Salvador foi atacada pelos holandeses, no século XVII. Na tricentenária fortaleza o seu largo portal era encimado por uma placa de madeira onde o tempo, a maresia e o cupim já tinham feito consideráveis estragos. Mas ainda era possível ler as desbotadas letras azuis da tabuleta:


CASA DE DETENÇÃO



Ia visitar SARA, presa política da ditadura.


Se os mais velhos da família (compreensivelmente conservadores) consideravam a situação política e jurídica dela plena de dissabores e temores, os mais jovens tínhamos um indisfarçável orgulho, mesmo em meio às angústias que cercavam sua segurança pessoal. Afinal, em Brasília pontificava Médici, o mais tenebroso dos generais-ditadores. Mesmo censurada, a imprensa noticiava sequestros e caças aos “terroristas”, assim considerados todos que resistiam (com ou sem armas), que davam testa e enfrentavam o poder militar.

E Sara era uma espécie de ícone para a geração mais jovem da família. Politizada, engajada, militante, defendia com firmeza e convicção suas ideias, mesmo a contragosto da mãe e tias muito católicas, que torciam seus nervosos dedos em torno de terços, orando para que ela “se aquietasse” como ouvi de Mainha uma vez, ajoelhada em frente ao pequeno oratório lá de casa. Mas, se cultivava ideais e lutava por eles, se era capaz de discursar em comícios e liderar passeatas, de expor-se e até de sacrificar-se, Sara sempre tinha a família como uma espécie de epicentro do seu universo afetivo. Nessas visitas na cadeia, ela perguntava sempre com carinho por cada um dos tios e primos: o que faziam, como estavam. E eram tantas as perguntas que às vezes eu não tinha todas as respostas, como quando, por exemplo, me perguntou uma vez em que série estava Ilzinha, a saudosa filha de “Tia Terezinha (Tetê)”, adolescente lá em Cachoeira.

Sempre que podia, levava-lhe um jornal, chocolate ou caramelos. Mas para isso tinha de sacrificar o dinheiro que seria destinado ao lanche ou então, à passagem de ônibus (nesse tempo não havia vale transporte nem tampouco passe escolar e o jeito era arriscar carona nesses casos…). Na entrada da cadeia eu tinha que passar pelo ritual da revista: a pasta com livros, cadernos e até os bolsos eram revirados. Aos poucos tornei-me tão conhecido dos guardas que a revista não era mais feita. Um dos porteiros mais simpáticos era um senhor, mulato gordo muito simpático, que com o tempo apenas acenava à passagem daquele jovem magrinho com a camisa azul-turquesa da Escola Técnica, onde ele dizia ter um sobrinho estudando e a quem infelizmente nunca conheci.

Sara e as outras colegas daquele infortúnio da prisão me recebiam no pátio, onde conversávamos bastante. Ela tinha a mania de espremer cravos e, deitado no banco de pedra, cabeça em seu colo, eu tinha meu rosto escarafunchado, enquanto comentávamos sobre algum assunto de família, notícia do jornal, até mesmo algum capítulo anterior da novela das oito. Às seis em ponto - fim das visitas - ia-me embora. Até a próxima aula de Físico-Química (perdão, visita !). No fim do ano, fiz recuperação claro e acabei me livrando daquelas fórmulas e cálculos combinando características físico/químicas (temperatura, volume, pressão, valor e trabalho, etc. Argh !) da matéria. Sara também acabou se livrando, mas da cela e do processo. E começou a tocar sua vida como profissional do Direito, coroada agora com a merecida ascensão a desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia.

2007. Aqui em Angola, do outro lado do Atlântico, sinto não poder dar-lhe pessoalmente um abraço na sua posse. Mas, tenho que homenageá-la de alguma forma. E a encontro num texto, que possa ser dirigido às gerações mais jovens da família. Rastreio a memória, vasculho aqui e ali, tento recompor cenas e diálogos, relembrar expressões faciais, datas e épocas, pôr lembranças em dia, tudo isso para exprimir o que se passa no âmago de minha alma nessa hora. Para isso é preciso resgatar fatos, lembrar com saudades (mas sem tristeza, por favor ...) os parentes que já não mais estão entre nós, recordar-lhes as manias, gestos e até mesmo o timbre da voz, revisitar tempos idos e compor, por menor e desimportante que seja, um esboço do que tem sido a atuação de Sara. Perdoem-me eventuais fraquezas da memória, mas elas não podem impedir-me de destacar o quão importante é a elevação de Sara ao posto máximo da justiça baiana. Não sei se sou o melhor para faze-lo (tenho minhas dúvidas ...) mas talvez seja um dos mais sinceros.

Para começar, essa promoção enriquece a justiça e deu-se por méritos acumulados, pelo seu desempenho no exercício da magistratura. A eles, acrescentem-se outros merecimentos como seu empenho incansável por ideais de justiça e democracia, valores dos quais nunca se afastou e que partilhou durante grande parte de sua vida com seu eterno Pedro Milton, outro vibrante e incansável defensor das causas da cidadania, da liberdade e dos direitos humanos e um feroz combatente de quaisquer formas de tirania.

Sara desembargadora ! Quanto justo orgulho devem sentir as suas filhas Catarina e Natássia, a irmã Mera, mais Flávia, Marquinhos (I e II) e Paulinho, sobrinhos. Também orgulhosos, todos nós primos e sobrinhos, as tias e demais parentes, espalhados por Itapicuru, Sambaíba, Pombal e os que estão em Brasília e Vitória, no Espírito Santo. E ainda os que ganhou da sua união com Pedro: a mãe Dona Nina, Sonia e irmãos, sobrinhos. Além das eternas e imorredouras amizades, feitas e conquistadas durante a vida ! Desde aquelas da mais tenra infância, os colegas de faculdade e passeatas, da clandestinidade e do cárcere. As lembranças inesquecíveis dos nomes e rostos de companheiros e companheiras, mortos na luta por seus ideais numa época de trevas e intolerâncias que, infelizmente, o Brasil viveu. "Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais ...". Nesse tempo cinzento dos anos de chumbo, Sara estava lá, nas ruas protestando, escondida em “aparelhos”, ou fugindo dos “hipócritas rondando ao redor” como falou Gil, contemporâneo poeta. Também ele perseguido, preso e ... que pagou um preço a mais: o exílio.

E que dizer do orgulho que também estão a sentir as muitas pessoas com quem a juíza Sara conviveu e se relacionou nestes anos, nas comarcas e juizados ? Elas são testemunhas da sua dedicação e empenho em fazer justiça. Desde os serventuários mais humildes, os advogados das partes, promotores, defensores públicos, colegas juízes e outras autoridades. Essa trajetória iniciou-se em pequenas comarcas, perdidas nos rincões sertanejos, morando em modestas pensões, convivendo - sem nenhuma dificuldade e com muita satisfação - com a gente simples do interior baiano, de onde ela própria veio.

Todos compartilham, cada um a seu modo, dessa conquista.

Orgulhosos estão também, na infinitude da existência, sua mãe a professora primária Maria Freire (a inesquecível “Tia Bibi” um poço de cultura, de quem recordo até hoje o precioso uso do vernáculo, a inflexão de voz e a pronúncia escorreita das palavras), Vó Cota, Tia Marinha e Tia Amélia, Padrinho João, Tio Paulo e Tia Rosinha, Tio Zé Esteves, Tio Deraldo, Painho e Mainha (“Tia Gisélia e Tio Souza”), meus irmãos Carlinhos e Pedrinho e tantos outros parentes e amigos que passaram por nossas vidas !


E, principalmente, Pedro Milton, cuja atuação competente, desassombrada e destemida, marcou de forma indelével a advocacia da Bahia nas últimas décadas. De cada um deles Sara é uma espécie de fiel depositária de honradez, princípios, honestidade, conhecimentos, esperanças num mundo melhor e sentimentos de amor ao próximo.

Sara chega a desembargadora com muita bagagem acumulada: política, profissional, cultural, ética e de vida. E quantas lembranças lhe acompanham ! Mas, não só. Também permanece íntegra em sua consciência a mesma dignidade que desde sempre cultivou. Ao ponto de não admitir pleitear dos cofres públicos qualquer indenização monetária por ter sido uma perseguida política. Direito que, embora lhe seja assegurado por lei, declina em favor de convicções pessoais. A juíza-cidadã que trilhou esse caminho até aqui é uma das mais novas integrantes da corte máxima de justiça da Bahia.

Parabéns, Desembargadora Sara Silva de Brito !
Parabéns, mais ainda, Justiça da Bahia

Luanda, 23 março 2007

Jorginho Ramos








2 comentários:

Anônimo disse...

Papai,
Imprimimos esse texto e o entregamos a Tia Sara... ela leu, chorou (como no dia da posse, em que vc telefonou), se encantou e mostrou a todo mundo essa linda homenagem, com o coração transbordando de saudade e carinho!
Ainda bem que imprimos uma "segunda via", porque passou TANTO de mão em mão que o papel ficou desgastado!
A família toda se emocionou... acredite, alguns choraram tanto quanto Tia Sara.
Seu talento de escritor é lapidado um tanto mais a cada dia. Os detalhes são incríveis (me fazem "mergulhar" em cada momento aqui descrito).
A posse de Tia Sara foi realmente linda! Foi inevitável lembrar nesse dia das pessoas que vc citou e que não estão mais figurando neste plano... e que estariam (ou estão) igualmente felizes e realizados com essa conquista. Você está APENAS em outro continente, mas o sentimos presente aqui - não só naquele dia, mas em todos os outros, o tempo todo.

Um parabéns maior ao Poder Judiciário baiano, de fato.
À Tia Sara, o nosso "muito obrigado" e o eterno desejo de (mais) felicidade e realizações!

Beijos da sua filhinha, fã incondicional (só não tenho a carteirinha... ainda!)
Desirée

Anônimo disse...

Pode parecer piegas o comentário que vou fazer agora mas... ñ resisto!!! Então, vamos lá:
Ñ é sobre o "saboroso" texto do meu eterno mestre JR e sim sobre o primeiro comentário postado aqui por sua filha Desirée.
annnhhhhhhhhhh!!! eu achei tão linda a maneira como ela se referiu ao talento do pai! E fiquei aqui emocionada!
É bom d+ admirar e ter orgulho dos nossos pais! E nisso eu tb fui privilegiada!
bjs para toda familia Ramos!

Adelyne